Miopia na infância: como travar a sua progressão com base na evidência científica
A miopia, ou dificuldade em ver ao longe, é um dos problemas visuais mais frequentes na infância. Nos últimos anos, a sua prevalência tem vindo a aumentar de forma significativa, tornando-se um verdadeiro desafio de saúde pública. Para além do impacto no dia a dia da criança, a progressão da miopia pode em alguns casos trazer riscos acrescidos para a visão futura, como descolamento da retina, glaucoma, catarata precoce e alterações degenerativas da retina (maculopatia miópica).
Neste artigo, explicamos o que é a miopia, o que a faz progredir e quais são atualmente, segundo os consensos internacionais mais recentes (World Society Paediatric Ophthalmology Society 2023 e Reino Unido/Irlanda 2024), as melhores estratégias para abrandar essa progressão.
O que é a miopia e porque progride?
A miopia resulta geralmente de um crescimento excessivo do olho em comprimento (chamado “alongamento axial”). À medida que o olho cresce mais do que o normal, as imagens deixam de se focar na retina e passam a formar-se antes dela, levando a visão desfocada ao longe.
Classicamente, a miopia é classificada com base no grau (ou graduação) medido pela refração cicloplégica:
- Miopia baixa: entre -0.50 e menos de -3.00 dioptrias (D)
- Miopia moderada: entre -3.00 e menos de -6.00 D
- Miopia alta: igual ou superior a -6.00 D
Este crescimento exagerado pode ser influenciado por fatores genéticos (história familiar de miopia), mas também por fatores ambientais — como pouco tempo ao ar livre e excesso de atividades de visão ao perto (como leitura prolongada ou uso intensivo de ecrãs a curta distância).
Estratégias baseadas na evidência para travar a progressão da miopia
O consenso científico atual recomenda uma combinação de estratégias comportamentais, ópticas e farmacológicas para controlar a miopia progressiva.
1. Comportamento: mais luz natural, menos ecrãs
Está bem documentado que passar mais tempo ao ar livre ajuda a prevenir o aparecimento da miopia e pode também abrandar a sua progressão. Recomenda-se pelo menos 2 horas diárias de exposição à luz natural. Acredita-se que a luz estimula a libertação de dopamina na retina, que por sua vez inibe o alongamento ocular.
Por outro lado, o uso excessivo de dispositivos digitais e tarefas de leitura prolongadas a curta distância (<20 cm) estão associados a maior risco de progressão. Por isso, é importante limitar o tempo de ecrã, promover pausas visuais frequentes e manter uma distância adequada ao ler. 2. Lentes oftálmicas com desfocagem periférica (tecnologia DIMS/HALT)
Nos últimos anos, surgiram óculos com tecnologia inovadora que, para além de corrigirem a miopia central, introduzem um leve desfoque periférico (desfocagem miópica) que ajuda a travar o crescimento do olho. As duas tecnologias mais estudadas são:
DIMS (Defocus Incorporated Multiple Segments): apresentam centenas de pequenos segmentos periféricos com adição positiva de +3.50 dioptrias, que induzem um anel de desfocagem míopica. Reduzem a progressão da miopia até 50% em média.
HALT (Highly Aspherical Lenslets Technology): utilizam pequenas lentes asféricas dispersas na periferia, criando um perfil de potência que também gera desfocagem míopica eficaz.
C.A.R.E. (Cylindrical Annular Refractive Elements): tecnologia desenvolvida pela Zeiss, utiliza elementos refrativos cilíndricos dispostos em anéis concêntricos ao redor da zona óptica central. Estes elementos geram estímulos de desfocagem miópica específicos, com o objetivo de inibir o crescimento axial de forma eficaz e confortável.
Estes princípios estão incorporados em várias lentes disponíveis no mercado:
- Hoya MiYOSMART™ (DIMS)
- Essilor Stellest™ (HALT)
- Zeiss MyoCare™ (CARE)
- Shamir Optimee™
Estas lentes são especialmente úteis em crianças entre os 6 e os 13 anos com miopia progressiva e têm mostrado segurança e eficácia em estudos clínicos randomizados.
3. Lentes de contacto com efeito terapêutico
Existem duas abordagens principais:
Lentes multifocais de uso diário: distribuem o foco da imagem entre zonas centrais e periféricas. Demonstraram reduzir a progressão da miopia em cerca de 40%.
Ortoqueratologia (Ortho-K): envolve o uso de lentes rígidas especiais durante a noite que moldam temporariamente a córnea, permitindo visão nítida durante o dia. É uma opção usada globalmente, com eficácia semelhante a outras terapêuticas. No entanto, o efeito é reversível com a suspensão do uso e requer higiene rigorosa e seguimento apertado. Na minha prática, não recomendo como primeira linha em crianças com menos de 11–12 anos, pois considero o risco de complicações infecciosas um fator de precaução nesta faixa etária.
4. Atropina em baixa dose: quando o colírio faz a diferença
A atropina, usada em colírio a baixas concentrações (0,01% a 0,05%), mostrou eficácia em reduzir o ritmo de progressão da miopia. Atua a nível da retina e esclera, inibindo os estímulos que levam ao crescimento do olho. Os estudos mais recentes apontam que a concentração de 0,05% oferece o melhor equilíbrio entre eficácia e efeitos secundários mínimos (pupilas ligeiramente dilatadas e pequena perda de foco próximo).
Importa destacar que a combinação de lentes com desfocagem periférica e atropina em baixa dose parece ter um efeito aditivo, ou seja, superior ao uso isolado de cada uma. Este é um dos temas mais discutidos nos consensos atuais e deve ser considerado sobretudo em crianças com miopia de progressão rápida.
O que os pais podem fazer?
Promover tempo ao ar livre todos os dias (idealmente 2 horas).
Limitar o uso de dispositivos digitais, especialmente a curta distância.
Agendar consultas oftalmológicas regulares, mesmo sem queixas visuais.
Discutir com o oftalmologista as opções mais adequadas para o seu filho: óculos especializados, lentes de contacto ou atropina.
Garantir adesão ao tratamento, pois a eficácia depende da consistência de uso (por exemplo, lentes DIMS devem ser usadas mais de 10 horas por dia).